Cansado de fugir de si mesmo, Marco Archer pede pra sair de cena.

Sobre a montagem do filme Curumim


A estação de montagem é como uma cozinha, é o lugar da alquimia, é aonde se escuta o filme, como ele pode e quer ser, até tomar sua forma definitiva. Na ilha, o filme, e principalmente um documentário, te diz onde estão suas forças e como - linguagem -, podemos organiza-las e corta-las para construir a narrativa. Temos recursos, repertórios, fórmulas e sabemos os filmes que queremos fazer, mas temos que estar abertos e atentos ao que o filme nos diz, durante a montagem. Cabe ao diretor e ao montador escutar, esculpir e muitas vezes se surpreender ao alcançar lugares jamais planejados, “roteirizados” ou premeditados.
Com o Curumim não foi diferente. Meu primeiro contato com o filme, foi ler as mais de 80 horas transcritas a partir das conversas telefônicas gravadas entre o diretor Marcos Prado e o Marco Archer Curumim durante sua estada no corredor da morte.

Ao marcar e selecionar os assuntos, questões e sentimentos que me moviam, a questão central que gritava e que permaneceu gritando até hoje era uma: a “orfandade” do Marco Archer; a carência latente, a busca agonizante por acolhimento e por pertencimento. Meu sentimento foi de que aquele menino que nunca cresceu - pois não teve “proteína afetiva” para se desenvolver -, havia se tornado traficante justamente para pertencer, para ser acolhido, para ter algum prestígio e popularidade. Curumim não era um “dealer” que entregava a droga e saia de cena, ao contrário, era bajulado, prestigiado, desejado e adorado pelos de sua(s) tribo(s), justamente por ser o “dealer”. 

“Marco Archer pediu pra sair de cena”: a viagem suicida e a “fuga”, escancaram que Marco Archer não agüentava mais ser o Curumim, personagem que inventou pra si mesmo, pra manejar e suportar a vida. A “fuga” ocorreu em duas partes: a fuga do aeroporto, que foi realmente uma fuga, e a segunda parte na qual se evidencia o desespero de Marco, pois o que ocorreu na verdade, não foi uma fuga, mas uma despedia agonizante do personagem Curumim e da vida “drogas, mulheres e rock and roll”. 
Em vez de Marco pegar um barco pra escapar do território indonesiano e da pena de morte, inventou para si mesmo a figura fictícia de um mexicano chamado John Miller, e ficou navegando entre ilhas, baldeando entre terra e mar, bebibas, cocaína e prostitutas, durante duas semanas, até ser encontrado pela polícia que estava totalmente mobilizada em sua busca.
Tenho uma longa relação de colaboração com o Marcos Prado, diretor do filme, fui assistente de direção do Estamira, Ônibus 174, Garapa e Pantaneiros, filmes que foram dirigidos-produzidos pela dupla José Padilha e Marcos Prado. Essa foi a primeira vez que montei um filme seu. Como assistente de direção, eu era uma espécie de lateral direito, mas um que subia ao ataque e que criava, acho que por isso, ele me convidou pra montar o filme. Foi um processo longo, tivemos muitos debates e embates para se chegar à um corte final. Mas acho que o Marcos queria isso, um montador teimoso, que além de querer ajuda-lo a chegar no filme que ele desejava, pudesse também encontrar outras possibilidades, e mesmo questionar suas escolhas, para que o filme encontrasse suas potências.
Durante o processo nunca nos esquecíamos da responsabilidade que era fazer um filme sobre alguém que havia sido morto como foi: assassinado por um pelotão de fuzilamento, na Indonésia. Estávamos sempre atentos, e jamais deixávamos de estar perplexos com o absurdo que foi a sua morte. Marco Archer estava enfermo, e sua última jornada que o levou ao corredor da morte, foi um grito agonizante, um pedido de ajuda em uma sociedade onde ninguém se vê ou se escuta, portanto, infelizmente este foi o jeito que ele conseguiu que o enxergassem. Ele não deveria ter sido executado, deveria ter sido acolhido para tratar de suas enfermidades que já estavam em um estado de inflamação psico-emocional-afetiva generalizada.
Além da tragédia, procurávamos o brilho, a esperança e a alegria na longa jornada do Curumim.
Marco Archer Curumim, convidou o Marcos Prado para fazer um filme sobre a sua vida. Um filme-memória, uma cinebiografia, um filme sobre pena de morte, um filme-legado? 

Não sei enquadrar  filmes em categorias, e nesse caso, o que importa é que o Marco Archer sentia que a morte chegaria e não queria partir sem deixar a sua mensagem, talvez uma longa cine-carta de despedida. Era como se este filme fosse capaz de falar pra ele mesmo, para os seus e para o mundo, que apesar de tudo, a sua vida tinha sido bem vivida.
E o realizador Marcos Prado teve a dignidade de, não só fazer um filme sobre o Curumim, mas de ir além, fez um filme com o Curumim. Essa abordagem do realizador, com certeza manteve vivo e com alguma esperança, um ser humano que agonizava, esperando a morte chegar. Essa abordagem talvez tenha sido até mesmo terapêutica e dado a chance de Marco Archer sair um pouco da fantasia onde sempre esteve, e quem sabe pela primeira vez na vida, olhar pra si mesmo durante o processo fílmico, enquanto esperava o veredicto final de sua sentença no corredor da morte.

Marco Archer ficou 12 anos preso, e após recorrer e perder em todas as instâncias, teve a sentença de pena de morte executada em 18 de janeiro de 2015, na Indonésia, quando foi encapuzado, amarrado à uma cruz de madeira em um descampado, e então fuzilado por um pelotão de soldados.



Alexandre Lima (montador do documentário Curumim)

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